Espaço Ubunto

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segunda-feira, 9 de junho de 2008

8 de junho de 2008 - Domingo
CartaCapital
Leandro Fortes, de Porto Alegre


Mais perto de Yeda

Apreendida por agentes da Polícia Federal, em 6 de novembro do ano passado, durante a Operação Rodin, uma carta do lobista tucano Lair Ferst endereçada à governadora do Rio Grande do Sul, Yeda Crusius, do PSDB, poderá causar um terremoto político em terras gaúchas. O texto no qual Ferst descreve com minúcias o esquema de desvio de verbas operado pela quadrilha liderada, segundo ele, pelo empresário José Antônio Fernandes, apontado pelo Ministério Público Federal como um dos principais chefes do nicho de corrupção montado no Detran local.

A carta desmonta duas teses de defesa de Yeda Crusius em relação ao escândalo: a da ausência de intimidade entre a governadora e o lobista, e a do desconhecimento da fraude tocada por aliados. A divulgação do teor da carta, aliada às escutas telefônicas feitas pela PF, divulgadas na semana passada no plenário da Assembléia Legislativa, deu fôlego a um movimento pró-impeachment da governadora. "Já não há dúvidas de que ela tinha conhecimento de tudo", diz o presidente da CPI do Detran, deputado Fabiano Pereira, do PT. "O que precisamos saber, agora, é qual o grau de participação da governadora na fraude", afirma.

Além da carta a Yeda Crusius, também foi encontrado na sede de uma das subcontratadas do Detran, a Pensant, um conjunto de atas de reuniões nas quais a quadrilha que desviava recursos do órgão registrou orientações administrativas, divisão de lucros, emissão de notas fiscais frias, lavagem de dinheiro e pagamentos de propinas. Mesmo para os padrões de impunidade do Brasil, é impressionante a desfaçatez dos envolvidos ao colocar no papel o organograma de seus crimes.

Anexados ao processo em andamento na 3ª Vara da Justiça Federal de Santa Maria, no interior do estado, esses documentos – a carta e as atas – foram também enviados à CPI do Detran, na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul.

A carta de Ferst tem três páginas e meia e, segundo a investigação da PF, o que foi encontrado pode ser apenas metade do texto original. O documento foi achado impresso, entre os papéis pessoais de Ferst, mas pode estar também arquivado digitalmente na CPU do computador dele, ainda a ser analisada pela polícia. No dia 26 de maio, em depoimento à CPI do Detran, o lobista tucano chegou a negar a existência da carta, mesmo depois de os papéis terem sido formalmente anexados ao inquérito da Operação Rodin. Ao depor na PF, contudo, ele admitiu ter escrito o texto para avisar Yeda Crusius das irregularidades cometidas no Detran, de onde a quadrilha lá instalada desviou, entre 2003 e 2007, estimados 44 milhões de reais.

A carta começa com um reverencial "Senhora Governadora". Em seguida, dá a dica de que a governadora estava informada das irregularidades ocorridas no Detran muito antes de o escândalo vir à tona. "Esta oportunidade é muito importante para que eu possa esclarecer uma série de assuntos que tem sido levantado (sic) ao seu conhecimento e a várias outras pessoas do Governo", escreve Ferst. Detalhe: desde o início do processo, a governadora tucana nega ter sido informada das ações da quadrilha desmobilizada pelo MP e pela PF.

Ferst acusa um grupo que estaria dedicado a difamá-lo liderado por José Fernandes, dono da Pensant, principal empresa "sistemista" agregada ao esquema de corrupção no Detran. O lobista também acusa João Luiz Vargas, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado, e o jornalista José Barrionuevo, ex-funcionário da RBS, maior grupo de comunicação do Sul do Brasil, de onde saiu, em 2003, após dez anos à frente da principal coluna política do Zero Hora, jornal mais influente do estado.

Na carta, o lobista afirma que Fernandes pagou diversos colunistas da imprensa gaúcha para "plantar" notas de interesse particular do grupo. Essa acusação talvez explique o item 3 de uma das atas de reunião apreendidas pela PF, datada de 30 de outubro de 2007, na Pensant. O texto refere-se a Eduardo Vargas, filho de João Luiz Vargas, conselheiro do TCE, a quem o lobista tucano aponta como desafeto dentro da quadrilha. Na ata, lê-se o seguinte: "Os pagamentos efetuados para o Jornal deverão ser justificados através de contratos ou mútuos".

Apesar de fazer uma radiografia devastadora da atuação de Fernandes, em momento algum Ferst admite ser culpado dos crimes depois investigados pelo MP e pela PF. Diz que o lobista é um notório corrupto e que sofre de transtorno bipolar. Lembra de ter relatado "pessoalmente" a Yeda Crusius "o caso dos pais-de-santo", quando um grupo de representantes de religiões afro-brasileiras fez uma manifestação em frente ao comitê do PSDB, durante a campanha de 2006, com a suposta intenção de identificar a então candidata como racista. Segundo Ferst, a tal manifestação foi montada por Fernandes e Barrionuevo.

Para falar das irregularidades no Detran, Ferst cria no texto um conjunto de argumentos para dar a impressão de nunca ter tomado conhecimento de qualquer falcatrua no órgão. Afirma ter participado da escolha da Fatec porque não achava correto uma empresa de fora, a Fundação Carlos Chagas, do Rio de Janeiro, fazer o trabalho no Detran gaúcho. No fim das contas, o lobista acabou contratado pela Fatec para prestar "assessoria" como coordenador de Relações Institucionais. Teria feito carreira na quadrilha se não tivesse se desentendido com Fernandes.

A Yeda Crusius não fala nada da luta interna entre as "sistemistas" controladas por um e por outro. Chama de "golpe de mestre digno da máfia" o fato de Fernandes ter emplacado a sede da Fundae, entidade substituta da Fatec, também fundação da Universidade de Santa Maria, no endereço da Pensant, subcontratada por ambas. Lá, Fernandes passou a fazer a seleção dos examinadores de trânsito para o Detran. "Fizeram esse processo com um risco muito grande, poderão expor o governo a questionamento ético", afirma. Depois, se vangloria. "O que me deixa profundamente abalado é que para fazerem tudo isso estão usando a força da coação de Governo que ajudei a eleger, usando o seu nome, Governadora".

Em uma das atas apreendidas, um item denominado "Diretriz Jaf (José Antônio Fernandes)" deixa no papel o clima de satisfação com o novo endereço da fundação gestora dos recursos desviados pela quadrilha. "Deverá ser feita uma cerimônia reservada para a Fundae e prestamistas (ou "sistemistas") das novas instalações", diz o documento. "Quem sabe depois uma outra com a presença do Presidente do Detran (Vaz Netto), mas nada muito pomposo ou chamativo", esclarece a nota.

Ferst lista, ainda, na carta, uma série de autoridades envolvidas nas maracutaias do Detran. São eles: Antonio Dorneu Maciel, diretor da Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE); João Luiz Vargas, conselheiro do TCE; Vaz Netto, presidente do Detran; Chico Fraga (Francisco Fraga), secretário de Governo do município de Canoas (prefeitura do PSDB); Barrionuevo e Fernandes. Acusa a todos de ter "projetos em andamento" em outras áreas do governo. "Estão formando uma verdadeira máfia para extorquir o Estado com superfaturamento de obras e serviços", registrou.

No documento, alega que, ao saber da troca da Fatec pela Fundae, entrou em contato com a direção do Detran para informar sobre a viabilidade de a Escola Técnica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), por meio de uma "escola de trânsito", assumir o contrato. Segundo ele, isso poderia resultar em uma redução de 20% nos custos, mas a idéia foi "integralmente rechaçada" por Vaz Netto – nomeado por Yeda Crusius.

Netto teria dito a Ferst que a UFRGS "era muito próxima" à governadora e ao marido dela, o economista Carlos Crusius, acusado pela oposição e pelo vice-governador do estado, Paulo Feijó (ex-PFL), de sistemática interferência indevida nos negócios do governo local. "É claro que não há interesse em mostrar-lhe os verdadeiros custos desse projeto", avisa o lobista tucano. "Estão ludibriando (sic)." Cita, como exemplo, ao fim do texto apreendido pela PF, o fato de Fernandes receber 600 mil reais por mês da Fundae "sem prestar serviço algum". E arremata: "Para quem tentou derrubar o seu projeto de governo, é uma bela recompensa".

Yeda Crusius alega nunca ter recebido a carta, versão corroborada por Ferst, mas é pouco provável, ante as novas evidências, que ela não tenha tomado conhecimento do conteúdo do texto escrito pelo antigo correligionário. Ferst participou ativamente da campanha eleitoral de 2006, quando atuou como arrecadador informal de fundos do PSDB, segundo informações da PF e do MP. O lobista admitiu, ainda, que a carta apreendida foi entregue a Marcelo Cavalcante, ex-chefe de gabinete da governadora e, atualmente, representante do governo estadual em Brasília. Segundo informou à PF, Ferst foi questionado por Cavalcante sobre a existência de provas capazes de embasar as denúncias. Diante da negativa do autor do texto, o ex-chefe de gabinete teria decidido, então, encerrar o assunto e arquivar a mensagem.

Gravação da Polícia Federal, feita em julho do ano passado, demonstra tanto a proximidade de Cavalcante com a governadora como a ligação dele com Ferst. No telefonema, Cavalcante avisa a Ferst do cancelamento do aniversário de Yeda Crusius, em 26 de julho, por causa do acidente com o avião da TAM, ocorrido nove dias antes, no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Na tragédia, havia morrido o deputado Júlio Redecker, do PSDB estadual. No fim da ligação, o secretário aproveita para passar ao lobista nomes de servidores da Secretaria de Fazenda a serem apresentados a uma empresa não nominada no grampo, provavelmente, cliente de Ferst. "Papel, Deise!", solicita, ríspido, Ferst à mulher, a ex-miss Brasil Deise Nunes, para anotar os nomes citados por Cavalcante.

Na quarta-feira 4, esse aparato de blindagem política em torno de Yeda Crusius começou a ruir quando 34 grampos telefônicos feitos pela PF, autorizados pela Justiça Federal, foram ouvidos pelos deputados estaduais gaúchos. Depois de perceberem a gravidade das escutas, em meio a um silêncio constrangido, parlamentares da base governista sentiram-se obrigados a acatar o pedido de convocação do secretário de Governo, Delson Martini. O termo foi assinado por dez dos 12 deputados titulares da comissão, inclusive o relator, o tucano Adilson Troca. Para garantir a convocação, o requerimento precisa receber os votos de somente sete deles.

Hiperlink: Mais perto de Yeda - Carta Capital - 08/06/2008
URL: http://clipping.planejamento.gov.br/Noticias.asp?NOTCod=435686

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