Sobre o lugar do estudo e prática das Relações Internacionais na atual pauta da Unegro, Movimento Social Negro e CONNEB.
Sidnei Borges Silva*
PARTE I
A Fundação Cultural Palmares e a SEPPIR- Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial do Governo Federal tiveram destaque, recentemente, no campo da cooperação internacional. A SEPPIR freqüentou os noticiários, jornais, blogs e listas dentro e fora das redes do Movimento Negro e suas entidades por ter firmado termo de cooperação com o governo dos Estados Unidos. A FCP- Fundação Cultural Palmares, por sua vez, divulgou as suas últimas ações internacionais de negociação e formalização de acordos de cooperação com a República de Cabo Verde e com a República do Equador.
Esses três eventos, tomados de conjunto, se prestam a análise das relações internacionais do ponto-de-vista do interesse do Movimento Social Negro e do povo negro brasileiro. A cooperação internacional nestes casos está de acordo com as práticas do estado brasileiro e a orientação atual da política externa brasileira formulada pelo Itamaraty/Ministério das Relações Exteriores. SEPPIR e FCP são organismos de estado e de governo que apresentam constante interação com o MRE e participação na execução da política externa.
A atual aproximação com os países africanos, a chamada “Política Externa Brasileira para a África”, reforçada no governo Lula da Silva, busca estabelecer o envolvimento destas duas instituições no processo de conquista do apoio dos referidos países ao Brasil na qualidade de líder dos países em desenvolvimento nos foros multilaterais, bem como ao pleito de um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Tal envolvimento tem como base o reconhecimento pelos formuladores da atual política externa de que existem “laços culturais e históricos” incontornáveis para incremento da cooperação e que SEPPIR e FCP são a face institucional desses vínculos.
A assinatura do acordo de cooperação pela SEPPIR com os EUA coloca esta secretaria em situação de artífice da estratégia governamental para o relacionamento bilateral, a serviço da mitigação das conotações de subordinação e alinhamento com a atual política externa estadunidense de combate ao terrorismo.
Os detalhes técnicos dos acordos de cooperação não serão abordados neste artigo, expressando-se apenas uma leitura crítica, ampla e distanciada, das injunções políticas gerais internas e externas. Os acordos da FCP e a própria instituição padecem das mesmas injunções anteriormente mencionadas para a SEPPIR. No entanto, podemos reconhecer que tem um caráter mais autônomo em relação à política externa do Itamaraty por ser mais um órgão de estado, com garantias de longo prazo, que a SEPPIR; além de compôr uma robusta pauta de patrimônio cultural comum africana e diaspórica.
Bahia e Brasília no relacionamento externo a partir do interesse do Movimento Social Negro, do povo negro brasileiro e do CONNEB
O estado da Bahia é, por circunstância histórica, cultural e geográfica, a principal “vitrine” e “corredor” para o relacionamento com os países africanos. Não é de surpreender que representantes e atores políticos negros daquele estado pontuem nas consultas, negociações e direção de instituições envolvidas nesse relacionamento.
Cabe, por ora, avaliar a maneira como as demandas internas de relacionamento externo, o tal “interesse público”, são gerados na relação direta com aquela população negra do Brasil. Na forma de comentário, é possível dizer que esse interesse é localizado, pois emana das tradições do candomblé, dos estudos africanos nas universidades baianas, das festas populares de origem, das instituições de representação de nações como a Casa de Angola e investimentos e parcerias da sociedade civil. Um interesse público generalizado da população negra do Brasil pelo relacionamento externo não existe de forma espontânea como na Bahia, mas de forma induzida pelo Movimento Social Negro, de um lado, e pelo governo federal, de outro. Desta forma, Brasília compõe o outro flanco de um eixo que atua de forma a adequar demandas localizadas ao “interesse nacional”, estratégico e nebuloso em sua definição.
O efeito dessa composição é a aparente inexistência de comunidades negras de relevância em outras regiões do país para definir os pontos de interesse. Brasília passa a ser o local onde são criadas as demandas internas de relacionamento externo de caráter mais abrangente do que a geografia do estado da Bahia. Salvo alguns aspectos pontuais no Rio e em São Paulo, como áreas tradicionais de origem do samba e do carnaval, os quais têm projeção internacional como símbolos da identidade nacional com influência africana e negra, não são reconhecidos outros centros de formulação de um interesse propriamente negro ou afro-brasileiro nos assuntos externos. O Movimento Social Negro, mesmo quando não participa formalmente das instituições de relacionamento externo, o faz através de organizações não-governamentais com financiamento externo e programas específicos de organizações internacionais (OMS, UNESCO, PNUD/ONU ), embora essa participação não corresponda a um processo de elaboração interna e sim a uma funcionalidade da “ordem externa”ou “Sistema Internacional”. É relevante essa participação do Movimento Social Negro no atual momento, porque o contato externo das organizações e organismos de governo permite a atualização e melhoria dos discursos técnico e político, seja pela divergência ou pela apropriação.
O alcance das relações internacionais na pauta interna governamental e do povo negro brasileiro pode ser percebido pela incorporação das referências aos acordos internacionais de direitos humanos que embasam muitas das demandas políticas do MN, tais como o Pacto Internacional para Eliminação da Discriminação Racial e outros, e principalmente, o Plano de Ação da Conferência de Durban. Mesmo assim, estamos diante de um alinhamento reativo a apelos externos, não de uma formulação do povo negro como ator na definição do interesse nacional. As principais organizações, e o próprio futuro CONNEB- Congresso Nacional de Negras e Negros do Brasil, passaram a ensaiar uma abordagem internacionalista nos documentos produzidos a partir de Durban ou recentemente. Muitos encontros e temas internacionais têm freqüentado a pauta recente, principalmente no diálogo com o universo acadêmico ou partidário e por conta do debate sobre implementação da Lei 10.639/03, que exige estudos e treinamento sobre história e cultura africana, na perspectiva do contato com centros de referência em países africanos e trânsito de pessoas nos dois lados do atlântico. Contudo, uma formulação de “interesse nacional” pelo assunto, insisto, não existe. O estado da Bahia e Brasília são hegemônicos para a produção desse pensamento.
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