13/04/2011
Por Lygia Viégas
Os dias 4 e 5 de abril de 2011 serão inesquecíveis para todos que lutam pela dignidade e cidadania do povo brasileiro. Nessa data ocorreu, depois de longos 8 anos de espera (e muito sofrimento), o processo judicial que finalmente absolveu o militante popular Luiz Gonzaga da Silva, ou Gegê, de um crime que, todos sabiam, ele não cometeu. Mas pelo qual foi penalizado, inicialmente com mais de 50 dias de prisão, e depois, com anos de liberdade contida, pois foi tratado pelo Estado de São Paulo como criminoso perigoso. Mas afinal, quem é Gegê?
Nascido em Catolé do Rocha, sertão da Paraíba, no sítio com o sugestivo nome “Rancho do Povo”, Gegê é representante típico da desigualdade social marcante no país: proveniente de família pobre, numerosa, negra e indígena, de trabalhadores rurais aviltados nos latifúndios do sertão nordestino, migrante em São Paulo, trabalhador subalterno.
No entanto, também se diferencia desse perfil, pois aprendeu desde cedo que, mais do que a simples luta individual pela sobrevivência, sem o enfrentamento político, não há superação dessa condição histórica. Imbuído dessa percepção, Gegê fez uma escolha: viveu e sofreu a luta rural, o movimento estudantil, o sindicalismo e a ditadura militar, que lhe rendeu duas prisões em 1969 (com 19 anos), além da triste memória da perda, nos porões da ditadura, de companheiros de esperança.
Tal situação, no entanto, não lhe roubou a esperança de viver em um país justo, apostando no que ele define como “resgate da cidadania”. Assim, participou ativamente da luta pelo fim da ditadura, sendo fundador do Partido dos Trabalhadores, da Central Única dos Trabalhadores e da Central dos Movimentos Populares.
Sua trajetória militante culminou na questão habitacional, problema que atinge milhões de pessoas no Brasil, que moram em favelas, cortiços e até mesmo nas ruas. Sensível à importância da moradia na organização pessoal e coletiva do povo brasileiro, Gegê passou a contribuir de forma significativa para a garantia do direito a morar com dignidade dos sem teto, tendo como foco o centro da cidade de São Paulo, por representar o combate à periferização do povo pobre, dominante nas políticas habitacionais.
Sendo fundador e importante liderança do Movimento de Moradia do Centro (MMC), Gegê e seus companheiros passaram a ocupar prédios públicos abandonados, como forma radical de pressionar o governo a abrir canais de negociação com os sem teto. A tendência do poder público, no entanto, é enviar para o local não um representante da área, mas a polícia. Os sem teto são tratados, de princípio, como criminosos. Essa é imagem da criminalização.
Foi assim em todas as ocupações do MMC. Na contramão desse olhar criminalizado, o MMC organiza os sem teto, estabelecendo coletivamente regras de convivência e formação política dos ocupantes. Dentre as regras, destaca-se a decisão taxativa de que não se pode beber ou entrar alcoolizado, o que pode até parecer rígido para alguns (como deu a entender o promotor de justiça e a juíza, ao longo do julgamento). No entanto, à luz da imagem social negativa dos movimentos populares, tratados como arruaceiros, é possível entender que todo o esforço para fugir dessa estereotipia é não apenas válido, mas fundamental.
Ora, mesmo com todas essas regras, o MMC não conseguiu escapar de uma ocorrência violenta no interior de uma das ocupações: o assassinato de um morador, pouco vinculado ao movimento, por um homem que sequer morava na ocupação. Tal situação foi o estopim para a saída do MMC do local, que hoje é dominado pela criminalidade. Pesadelo que sufocou o sonho coletivo de construir ali uma habitação modelo, projeto não só dos militantes do MMC e moradores do local, mas de diversos universitários e grupos ligados aos Direitos Humanos.
O que chama a atenção é que o assassino nunca foi investigado, mas Gegê foi rapidamente preso e condenado, mesmo sem uma condenação oficial, por um crime que não cometeu. Criminoso ou criminalizado? Basta olhar para ver que a criminalização atinge todos os movimentos sociais, a exemplo do MST ou de professores grevistas. Tal processo atende à clara finalidade de arrefecer a luta social no Brasil, cuja história remonta a invasão portuguesa em 1500.
Afinal de contas, que crime Gegê cometeu? O crime de apostar na organização popular na luta pelos direitos humanos, pela cidadania, pela dignidade. Só mesmo quem não conhece na pele ou de perto o que é viver em condições indignificantes pode comparar a luta de um movimento social e do povo que nele participa com heróis dos quadrinhos ou filmes de Hollywood, como se falou no julgamento. É certo que, se na ficção é necessária a existência de homens aranha, na vida real, a luta se faz entre iguais, mas que são tratados de forma desigual e urram ao poder público sua condição de ser humano e cidadão.
Lygia Viégas é psicóloga, mestre e doutora em psicologia escolar e do desenvolvimento humano pelo Instituto de Psicologia da USP. Co-autora de um livro de memórias do MMC, ainda não publicado, bem como do capítulo “Uma biografia de lutas”, do livro “Cidadania negada: políticas públicas e formas de viver (PATTO, 2009), que apresenta, de forma resumida, a trajetória de Gegê.
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