Espaço Ubunto

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terça-feira, 3 de maio de 2011


GENOCÍDIO DO POVO NEGRO: FORÇA DE EXPRESSÃO OU EXPRESSÃO DA FORÇA?





Rebeca Oliveira Duarte*





            Polícia Militar jogar jovens na maré do Rio Capibaribe em Recife, debaixo da Ponte Joaquim Cardozo, não foi ato isolado. É uma prática.

            Essa é a conclusão, afinal, do delegado da Gerência de Polícia da Criança e do Adolescente – GPCA – tratando especificamente do caso no carnaval pernambucano deste ano em que jovens foram abordados, torturados e forçados a entrarem na maré do rio por policiais militares, resultando na morte de dois adolescentes. Diogo Rozendo Ferreira, 15 anos, e Zinael José Souza da Silva, 17, por não saberem nadar, estarem vestidos de calça jeans, sapatos e, ainda, espancados, não conseguiram lutar contra a correnteza e morreram afogados.

            A sociedade entra em choque, espanta-se com o óbvio. Todas as pessoas conseguem enfim enxergar a cor das vítimas. O grupo de catorze jovens, negros, pobres e alguns com a estética da moda na periferia – cabelos cortados rente e pintados de louro –, foram abordados quando iam ao Recife Antigo por terem sido “confundidos” com  “maloqueiros” que fariam arrastão no carnaval. Não foram revistados, solicitados documentos, sequer perguntados os nomes. A prática, velha e corriqueira, foi detê-los, jogá-los em viaturas lotadas,“arriar a madeira” – jargão policial –  e jogar os rapazes à própria sorte no rio poluído, profundo e perigoso. Depois perguntou-se quem eram as jovens vítimas. A triste ironia do racismo brasileiro: um dos mortos, Zinael, portava uma carteira que comprovaria ser ele filho de um colega de profissão dos algozes, de um policial militar.

            O que o delegado e a sociedade hoje constata não é, infelizmente, novidade para o movimento negro. Há muito são apresentados fatos que comprovam haver uma ação genocida cometida não apenas pela violência policial, mas pela omissão dos poderes públicos em relação à vulnerabilidade da juventude negra, em relação à saúde da população negra, dentre outras questões cruciais. Os índices da mortalidade por violência direta ou omissão do Estado, através de seus agentes, podem comprovar em números que o Brasil é estruturalmente um Estado racista, e que desde a sua formação promove ou permite promover-se o extermínio da população negra – explicitamente, como nesse caso e em casos exemplares como a chacina de Nova Iguaçu e a cometida contra os jovens da Comunidade dos Pequenos Profetas, já denunciado em artigo no Jornal Irohin – ou implicitamente, como nas mortes de corredores dos hospitais públicos, por falta de atendimento ou atendimento precarizado da população de baixa renda, que nada à toa é representada em cerca de 70% pela população negra. Essa foi inclusive a compreensão do relator especial da ONU sobre discriminação racial, Doudou Diène, após visita ao Brasil no ano passado.

            A tecnocracia jurídica brasileira, no entanto, considera incorreto o termo GENOCÍDIO para essa situação de assassínio generalizado da população negra. Esbarramo-nos, sempre e tanto, no mecanismo sofisticado que o Brasil criou para perpetuar o racismo: a sua não nomeação supõe a sua inexistência. Logo, atos segregacionistas e de genocídio perpassariam pela interpretação jurídica, inclusive na defesa de Direitos Humanos, através de expressões não-raciais, essas sim admitidas e generalizadas, como execução sumária, grupos de extermínio, violência policial. Isso põe os diversos tipos de violações num só “cadinho” de análise, flexibilizando o diagnóstico e ocultando uma realidade histórica de violência institucional que começou muito antes da ditadura militar.

            Se olharmos com cuidado os ingredientes dessa sopa, no entanto, não será difícil compreender que GENOCÍDIO do povo negro não se trata meramente de uma força de expressão utilizada por militantes do movimento negro; não é utilizada apenas, infelizmente, para visibilizar nossas especificidades. É, sim, uma realidade cristalizada e generalizada nas instituições brasileiras.

            A definição extraída da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, da Assembléia Geral da ONU, ratificada pelo Brasil em 1951, é bastante explicativa nesse sentido: trata-se de Genocídio aqueles atos – cometidos quer em tempo de guerra ou em tempo de paz (art. 1º), por governantes, funcionários ou particulares (ar. 4º) –, admitindo conluio, incitação, tentativa e cumplicidade (art. 3º), que tenham a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tal como o assassinato de membros do grupo, o dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo, a submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial, as medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo e a transferência forçada de menores do grupo para outro (ar. 2º).

            O que nossa tecnocracia jurídica não admite, em termos de interpretação, é a questão da intencionalidade de atingir um grupo racial. No entanto, mesmo na interpretação eurocêntrica do direito, sabemos que a omissão também pode representar uma conduta ilícita intencional. Não será outra constatação ao passearmos, sem distrações, nos corredores de Febem's ou Fundac's, de penitenciárias, de delegacias. Não será outra constatação se avaliarmos, sem distrações, a cor e as características físicas das vítimas de abordagem violenta de policiais civis e militares. Não será outra constatação se ouvirmos, sem distrações, os depoimentos daqueles jovens negros agredidos no carnaval de que teriam sido expostos, outras vezes, ao mesmo tipo de truculência. Omitir-se quanto ao fato comprovado numericamente de que a população negra está mais sujeita à repressão policial e à punição jurisdicional é, intencionalmente, permitir que ela continue sendo vitimada.

            Historicamente, o sujeito negro, excluído do acesso a bens e direitos, é criminalizado nesse Estado repressor, patrimonialista e cujas práticas penalistas foram alimentadas por teorias racistas da criminologia. Padronizado como suspeito preferencial por estereótipos racistas, o sujeito negro, na cultura de extermínio das polícias, é o alvo certo nas abordagens policiais e em atos de tortura e morte, como o foram Diogo, como Zinael, como Flávio Santana e tantos outros. Isso, tecnicamente, está previsto no art. 2º da Convenção como “assassinato de membros do grupo” racial. Não há como negar a intencionalidade racista dos agentes públicos quando, por serem negros os alvos, não foi feita qualquer revista ou feita qualquer abordagem, matando-os sumariamente. A tortura recebida pelos jovens do caso em Recife descortina várias outras situações e depoimentos em que jovens negros são abordados arbitrária e violentamente – inclusive com expressões racistas como “negro safado”, dentre outras – e adequa-se ao mesmo artigo como o cometimento de “dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo”. E, do mesmo modo, sejam levantadas as mortes por omissão médica; a mortalidade materna; o grupo mais atingido pela ausência de políticas públicas em saúde; sejam ainda avaliadas estatisticamente as comunidades pobres, majoritariamente negras, e perceberemos que também se adequa ao mesmo artigo como uma “submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial”. Optar por uma política econômica que não priorize erradicar essas agudas desigualdades configura, também, uma omissão intencional.

            É exatamente por essas razões, de não visibilizar o Genocídio contra o povo negro no Brasil, que a demonstração de que a política brasileira sempre foi racializada recebe tão violentas oposições no campo formal por quem vivencia e patrocina essa realidade, seja na Administração Pública, nos campos jurídico, acadêmico ou legislativo. A responsabilidade política é muito grande. É histórica.

            Por Diogo, por Zinael, por Flávio e por tantos homens e mulheres negras violados pelo racismo, no entanto, permaneceremos denunciando esse Genocídio secular, que está bem aqui, em nosso cotidiano, inscrito com todas as letras nas ações e omissões como a expressão da força racista nas instituições públicas, lido e percebido facilmente por quem não anda distraidamente em nossas ruas, em nossas comunidades. Nem muito menos em nossas próprias casas.



* Advogada do Observatório Negro, especialista em Direitos Humanos, pela UFPB, e mestranda em Ciência Política na UFPE. “Fellow” da Ashoka.

Um comentário:

HELDER XAVIER disse...

Há necessidade de ampliar e multiplicar a postagem de denúncias em Redes Sociais, basta incluir um link,ok? Mais uma garantia de defesa e promoção de Direitos HuMANOS.Ecossaudações Jornalísticas.